06/08/2008

Leitura é fundamental


Lá no início do blog eu comentei brevemente sobre a importância da leitura para quem deseja escrever bem. E esse tópico é tão importante que eu resolvi voltar a ele. Nas minhas andanças pela rede, encontrei esse texto imperdível da Ana Maria Machado que divido agora vocês.


LER E CRESCER
Ana Maria Machado


Com as novas descobertas científicas sobre o funcionamento do cérebro e a constatação de que o DNA dos chimpanzés e dos humanídeos têm muito mais semelhanças do que se imaginava, a própria conceituação do humano vai se modificando. Não se aceita mais a definição simples que apresentava o homem como o único animal racional - na medida em que observação de comportamento animal e experiências em laboratório vão comprovando diferentes níveis de capacidade de raciocínio em seres de outras espécies.

Tampouco se aceita, simplesmente, que esse diferencial entre nós e eles se situe apenas na capacidade do uso da linguagem. Essas percepções começam a ser mais refinadas. Caracteriza-se a humana como linguagem articulada, assinalando uma marca de distinção. Mais que isso, torna-se necessário refinar a descrição do tipo de uso que os humanos fazem da linguagem, acentuando que se trata de uma linguagem simbólica, conotativa e capaz de abstrações e ambiguidades e não apenas denotativa, capaz de indicar onde pode estar o alimento ou existir perigo. Com isso, amplia-se o âmbito em que a linguagem passa a ser examinada, indo-se mais além da simples emissão de sons significativos pelo aparelho fonador. Passa-se a englobar também manifestações visuais, sonoras e corporais. O que conta, então, não são apenas os idiomas, mas também as pinturas, as danças, a música, as diferentes formas de representação, a escultura, a arquitetura - em duas palavras, a criação e a transmissão da cultura.

Pouco a pouco, essas próprias noções vão também ganhando matizes que as caracterizem melhor, permitindo definir o humano com mais exatidão. Percebe-se que não basta que certas manifestações sejam expressas ou criadas. Precisam ser transmitidas. E transmitidas além do simples nível do instinto, em que um pássaro como o joão-de-barro não precisa ensinar os filhotes a fazer de barro a sua casinha, enquanto o beija-flor tece sua intricada trama de gravetos e pendura seu ninho em perfeito equilíbrio na ponta mais fina de um galho sem precisar que ninguém lhe dê instruções. Como um peixe não precisa um mapa para lhe ensinar o caminho rio acima na hora da desova.

A marca do humano está numa transmissão de experiências muito mais complexa, capaz de atingir quem vive muito longe ou ainda não nasceu. Em alguma forma de superação dos limites da oralidade. Numa produção de textos e no correpondente consumo textual. Por isso, para crescer, a humanidade necessitou da escrita, capaz de fixar a memória e empurrá-la para mais adiante e para mais distante, por sua vez estimulando que as descobertas seguintes pudessem encontrar parte do caminho já caminhado, e não necessitassem refazer novamente todo o processo de tentativas e erros já percorrido por outros seres da mesma espécie.

Com a inacreditável capacidade humana de ter idéias, sonhar, imaginar, observar, descobrir, constatar, enfim, refletir sobre o mundo e com isso ir crescendo, essa produção textual vem se ampliando ao longo da história. As conquistas tecnologicas e a democratização da educação trazem a esse acervo uma multiplicação exponencial, que começa a afligir homens e mulheres de várias formas. Com a angústia do excesso. A inquietação com os limites da leitura. A sensação de hoje ser impossível abarcar a totalidade do conhecimento e da experiência (ingênuo sonho de outras épocas). A preocupação com a abundância da produção e a impossibilidade de seu consumo total por meio de um indivíduo. O medo da perda. A aflição de se querer hierarquizar ou organizar esse material. Enfim, constatamos que a leitura cresceu, e cresceu demais.

Ao mesmo tempo, ainda falta muito para quanto queremos e necessitamos que ela cresça. Precisa crescer muito mais. Assim, multiplicamos campanhas de leitura e projetos de fomento do livro. Mas sabemos que, com todo o crescimento, jamais a leitura conseguirá acompanhar a expansão incontrolável e necessariamente caótica da produção dos textos, que se multiplicam ainda mais, numa infinidade de meios novos. Muda-se então o foco dos estudiosos, abandona-se o exame dos textos e da literatura, criam-se os especialistas em leitura, multiplicam-se as reflexões sobre livros e leitura, numa tentativa de ao menos entendermos o que se passa, já que é um mecanismo que recusa qualquer forma de domínio e nos fugiu ao controle completamente.

Falar em domínio e controle a propósito da inquietação que assalta quem pensa nessas questões equivale a lembrar um aspecto indissociável da cultura escrita, e nem sempre trazido com clareza à consciência : o poder.

Ler e escrever é sempre deter alguma forma de poder. Mesmo que nem sempre ele se exerça sob a forma do poder de mandar nos outros ou de fazer melhor e ganhar mais dinheiro (por ter mais informação e conhecer mais), ou sob a forma de guardar como um tesouro a semente do futuro ou a palavra sagrada como nos mosteiros medievais ou em confrarias religiosas, seitas secretas, confrarias de todo tipo. De qualquer forma, é uma caixinha dentro da outra: o poder de compreender o texto suficientemente para perceber que nele há várias outras possibilidades de compreensão sempre significou poder - o tremendo poder de crescer e expandir os limites individuais do humano.

Constatar que dominar a leitura é se apropriar de alguma forma de poder está na base de duas atitudes antagônicas dos tempos modernos. Uma, autoritária, tenta impedir que a leitura se espalhe por todos, para que não se tenha de compartilhar o poder. Outra, democrática, defende a expansão da leitura para que todos tenham acesso a essa parcela de poder.

Do jeito que a alfabetização está conseguindo aumentar o número de leitores, paralelamente à expansão da produção editorial que está oferecendo material escrito em quantidades jamais imaginadas antes, e ainda com o advento de meios tecnológicos que eliminam as barreiras entre produção e consumo do material escrito, tudo levaria a crer que essa questão está sendo resolvida. Será? Na verdade, creio que ela se abre sobre outras questões. Que tipo de alfabetização é esse, a que tipo de leitura tem levado, com que tipo de utilidade social? Portanto, deixo a pergunta no ar, para ser objeto de nossas reflexões posteriores, e proponho um corte para passarmos a falar do assunto desde outro ângulo completamente diverso.

A mensagem da Unesco no Dia do Livro de 2002 resume o papel do livro na sociedade atual, afirmando:

“Receptáculo da memoria e vetor da criatividade, o livro é, ao mesmo tempo, depósito de palavras e plataforma para a troca de idéias. Peça única e, por sua vez, objeto reproduzível, criador de sentido e provocador de idéias, obra original e espelho de uma sociedade, constitui um patrimônio que, partindo das raízes próprias de uma tradição cultural determinada, não pára de crescer, sozinho, em interação com outras tradições e no diálogo permanente com o outro.”

Descrição perfeita de um processo desejável. E aparentemente tranqüilo, absolutamente tranqüilo. Como uma planta que cresce no campo. Como algo que cresce vegetativamente, dizemos. Bem diferente do que cada um de nós experimentou em seu próprio crescimento na adolescência - o crescimento que mais recordamos, já que o tremendo crescimento intrauterino ou na primeira infância não ficou guardado em nossa memória.

Mas como eu disse que ia mudar de ângulo e de abordagem, mudo também de área de linguagem. E passo a falar de literatura infantil. Afinal é na infância que nós mais ouvimos a pergunta crucial, que deveria ser feita no início do estabelecimento de qualquer programa de alfabetização ou de fomento à leitura, se entendermos que ler é crescer. Aquela perguntinha, que toda criança conhece : “o que você quer ser quando crescer?”

Ah, sim, porque toda criança quer crescer. Todo indivíduo que se alfabetiza também quer. Mas quer crescer e ser o quê? Um bom leitor de manuais de instruções para fazer funcionar bem a fábrica onde trabalha? Um leitor de itinerários de ônibus e nomes de ruas? Um leitor de páginas esportivas de jornais, folhetos de cartomantes e suplementos coloridos de promoções de eletrodomésticos? Um leitor de mensagens no correio eletrônico, capaz de navegar por diferentes sites na internet? Um leitor capaz de discernir quais fontes são confiáveis ou um que acha que basta estar num livro ou num site para que a palavra seja sagrada? Um leitor de notícias de jornais e revistas? Um leitor dos artigos que analisam essas notícias nos jornais e revistas? Um leitor dos livros que capacitam a redigir essas análises? Um leitor de textos poéticos, filosóficos e literários que suscitam perguntas tais que não são totalmente respondidas por apenas uma vertente dessas análises e exigem sempre mais, sem aceitar idéias feitas, frases feitas, slogans e estereótipos? Até onde cada um quer crescer?

A leitura pode ser a chave do tamanho - para usar a expressão que Monteiro Lobato criou, e empregou para dar o título de um de seus livros mais fascinantes. Mas tamanho não basta. Da Inquisição medieval a tantas outras formas de pensamento ditatorial e de manipulação de textos, temos visto ao longo da história em que medida o enorme crescimento do poder de certas palavras escritas pode ser usado para esmagar a humanidade. Aliás, de certo modo, é mesmo de uma reação contra isso que trata o livro A Chave do Tamanho: de uma tentativa, por parte dos pequeninos (as crianças e os brinquedos), para acabar com os males causados pelos grandes -- os adultos, os poderosos que levaram o mundo à guerra (no caso, à Segunda Guerra Mundial). A menor de todas as personagens, a boneca Emília, junto com o boneco Visconde de Sabugosa, decide terminar com todas as guerras e parte para a ação. Uma simples boneca de pano toma essa decisão após estar sendo alimentada com as idéias e valores transmitidos pelas histórias que Dona Benta vinha contando desde o primeiro volume e que incluíam contos de fadas, fábulas de Esopo e de La Fontaine, contos e lendas do folclore brasileiro, mitologia greco-romana, elementos de cultura de massa (como Popeye e Gato Félix), narrativas das Mil e Uma Noites, as Aventuras do Barão de Munchausen, obras de literatura infantil como Alice e Peter Pan, discussões com filósofos gregos, um mergulho num grande clássico ocidental como Dom Quixote, noções de física e geologia, de gramática e aritmética, um apanhado geral da História da humanidade e da evolução da tecnologia. É com o acúmulo de todo esse conhecimento, transmitido de forma crítica e questionadora, que uma bonequinha cresce ao ponto de questionar os grandes e poderosos, e se dispõe a fazer alguma coisa para acabar com todas as guerras, de uma vez por todas. Ao desligar a Chave do Tamanho e reduzir as pessoas a dimensões minúsculas, mais do que encenar uma alegoria redutora da humanidade à sua verdadeira grandeza, Emilia está comprovando seu próprio crescimento e mostrando a terrível capacidade crítica e questionadora que desenvolveu desde que lhe deram a pílula falante, e com isso ela teve acesso à palavra, lá no início de todas as aventuras.

Leitora atenta (ou ouvinte atenta) de toda a literatura (oral e escrita) que Dona Benta traz aos netos a cada serão, a boneca já tem então como se apoiar em um cabedal cultural acumulado. Já tem uma consciência expandida e demonstra sua autonomia que a faz afirmar “Eu sou a Independência ou Morte”. Cresceu ao ponto de se converter numa criatura permanentemente crítica e, com isso, põe em crise as formas tradicionais de dominação dos grandes. Aliás, as palavras crítica e crise são da mesma família semântica e, segundo alguns etimologistas, em sua passagem do grego ao latim contaminaram outra palavra que nos interessa aqui - crescer.

É claro que ler instruções mecanicamente, sem pensar de modo crítico, também poderia trazer algum crescimento. E traz. Outra personagem da literatura infantil nos mostra isso de modo claro. Bastou ler o rótulo BEBA-ME num vidrinho e Alice bebeu e cresceu.

“Antes de chegar à metade da garrafa, já estava com a cabeça batendo no teto, e teve que se encolher para não quebrar o pescoço.” (...) “Continuou crescendo cada vez mais. Daí a pouco, teve que se ajoelhar no chão. Em um minuto já não havia mais espaço nem para isso...”

Evidentemente, não é esse o ideal de crescimento que se deseja, descontrolado e imobilizador, paralisando o leitor em posições sem nenhum conforto, oriundas de uma leitura meramente passiva, não questionadora. O jeito é ser dono da própria palavra, criar a própria história, conseguir crescer para assumir a própria autoria, como a própria Alice percebe em seguida ao afirmar no parágrafo imediato: “Deviam escrever um livro sobre mim, bem que deviam! Quando eu crescer, eu mesma vou escrever...”

Para isso, vivendo uma sucessão de variações de tamanho, a cada nova experiência que se soma, a partir de sua curiosidade e disponibilidade ao risco, a menina afirma sua capacidade de enfrentamento. Depois de diminuir ao comer um bolinho - sem instruções - ela volta a crescer ao provar do cogumelo e constata :

“Bom, pelo menos minha cabeça ficou livre desta vez! - disse ela, toda feliz.”

Crescer deve servir mesmo para isso -- para libertar a cabeça. Caso contrário, não faz sentido aumentar. E com a cabeça livre e as experiências de crescimento crítico acumuladas, passa a ser possível ir controlando o próprio crescimento - como faz a menina, alternando as mordidinhas nos dois lados do cogumelo até atingir o tamanho que queria e que mantém até perto do final da história, quando ela torna a crescer num momento em que se introduz outra variável. Essa, inesperada: o direito de crescer.

No tribunal, na hora do julgamento e das decisões da autoridade sobre vida e morte, enquanto ouve uma longa leitura de um comprido rolo de pergaminho, e examina criticamente o que os jurados escrevem em suas lousas, após refletir que “muito poucas meninas de sua idade saberiam o significado’ de certas palavras, absolutamente imersa numa situação em que cada parágrafo fala de leitura e de escrita, de cartas e depoimentos, de listas e documentos, de paródias e pastiches, de alusões e citações, ela desanda a crescer novamente. Seu crescimento começa a incomodar os outros e um personagem a seu lado lhe diz :

“- Você não tem direito nenhum de crescer aqui dentro.

- Deixe de bobagem - disse ela, mais segura. - Você sabe que também está crescendo.

- É, mas numa velocidade razoável...”

Claro. O que incomoda não é apenas que ela cresça. É que deixe os outros para trás, graças à velocidade do crescimento de quem está vendo criticamente toda aquela situação de escrita e leitura pública e não respeita a autoridade, rejeitando uma ordem narrativa espúria que insiste em apresentar primeiro a sentença e depois o veredito. Ridicularizando o absurdo do que o Rei chama de “prova mais importante que trouxeram até agora”, um texto tão ambíguo gramaticalmente que nem ao menos se consegue saber o que diz, ela enfrenta:

“Pois sim - disse Alice (que tinha crescido tanto nos últimos minutos que não tinha mais medo de interrompê-lo) - Se algum dos jurados for capaz de explicar do que se trata. Dou um doce a quem conseguir. Eu acho que é só um amontoado de eles, elas, tus e nós, muito confuso e sem um pingo de sentido.”

Desnudando a falta de sentido da palavra dos poderosos, ela cresce de uma vez, parte para o enfrentamento, reduz rei e rainha a meras cartas do baralho, a folhas secas caindo de uma árvore. Mas traz de volta sua experiência transfigurada, capaz de ser transmitida de imediato à irmã - mesmo mais velha e maior - e ser guardada para o seu próprio futuro, quando fosse mulher feita, capaz de passar a palavra a gerações posteriores :

“E como reuniria em volta de si outras crianças, seus filhos, e faria seus olhinhos ficarem brilhantes e curiosos, com muitas histórias estranhas, talvez mesmo o sonho que tivera com o País das Maravilhas muito tempo antes.”

Esse crescimento é que é muito interessante, sacudido por um turbilhão de intertextualidade, feito de leituras anteriores que alimentam novas escritas e novas leituras, acrescentando uma soma de novas experiências e uma visão crítica capaz de fazer questionamentos. Uma leitura que não aceita passivamente as palavras sagradas ou o poder inquestionável e autoritário do escrito, mas se propõe a uma atividade intensa sobre o texto ao decifrá-lo, acrescentando-lhe riquezas trazidas de outras leituras e contaminando-o com outros textos capazes de fecundá-lo sempre.

Claro, para isso a primeira condição é que o texto lido não seja estéril. Que, pelo contrário, seja fértil, cheio de promessas e potencial. Daí a importância fundamental do livro que vai constituir o ponto de partida da leitura. Daí a crescente insistência que fazemos hoje na qualidade das seleções oferecidas à criança pela escola, por exemplo, por políticas de leitura que não podem se limitar a pretender modificar estatísticas e enfatizar quantidades. Daí ser essencial ter clareza sobre que tipo de leitura se quer construir. Ou sobre o que se entende por crescimento trazido pelo livro.

Não basta, portanto, ler manuais de instruções, textos fechados, clichês, frases-feitas, tecnicismos superficiais, descrições óbvias, conselhos rasteiros. Esse tipo de leitura só serve para fortalecer obediências cegas, consolidar servidões, reforçar preconceitos. Ou seja, contribui para formar rebanhos e assegurar uma mentalidade conformista e dócil, disposta a aceitar padrões impostos. Pode ser extremamente útil aos poderosos, garantindo-lhes sociedades de consumo passivo, seja para comprar qualquer produto seja para apresentar comportamentos fanáticos em política ou religião, seja para ir à guerra contra outros povos ou outras etnias.

Aliás, é sempre bom lembrar: ninguém nasce com preconceitos. Eles não são naturais. Pelo contrário, todos eles são adquiridos no contato cultural, na repetição de estereótipos, na ruminação mental de idéias prontas (próprias ou alheias), que passam a ser respeitadas como sagradas, que não admitem ser questionadas ou cotejadas com uma ampla variedade de pontos de vista diferentes.

O melhor antídoto contra a inoculação passiva de preconceitos e da ideologia alheia é a recusa do estereótipo e a busca do protótipo - aquele texto novo, prenhe de possibilidades insupeitadas e das surpresas (lingüísticas, estilísticas e de pensamento) que caracterizam a boa qualidade literária. Aqui e agora, não nos cabe entrar em discussões dispersivas sobre o que é literatura, afinal de contas, da mesma forma que pretendemos evitar cair na armadilha de ficar dando listas de livros, ou fórmulas de reconhecer bons textos. Não é assim que as coisas se passam. Da mesma forma que amar se aprende amando, ler se aprende lendo.

Só a exposição freqüente e continuada a obras de arte vai apurando o gosto das pessoas, ensinando a apreciar essas obras e reconhecer o que elas são, refinando o senso estético do usuário, acostumando-o a padrões mais exigentes. Aí se chega ao ponto a que a escritora Ruth Rocha alude quando diz que sabe que um livro é bom, porque ele lhe dá uma espécie de arrepio na alma, ou um súbito aperto no coração. Ou, de tanto alguém ler e ter mais intimidade com diferentes textos, começa a distinguir entre eles qual é que tem qualidades literárias, essa coisa indefinível que ninguém consegue precisar com exatidão mas que, como enfatizou Roger Chartier, tem a ver com a capacidade de despertar reapropriações múltiplas por parte de diferentes leitores - ou por parte do mesmo leitor em diferentes momentos.

O outro tipo de leitura (ou de texto), aquele que não permite apropriações múltiplas e inesperadas por novos leitores e ciscunstâncias diferentes, não leva ao crescimento. Pelo contrário, é limitador e redutor. Nem toda leitura faz crescer, afinal de contas...

Não é isso que se precisa ler, nem é assim que se deveria ler para crescer.

Mais uma vez, a literatura infantil nos fala de um personagem que associa literatura e crescimento - Peter Pan.

Muita gente acha que ele encarna o mito da eterna infância, da criança que não quer crescer, mas prefere viver para sempre no paraíso lúdico dos brinquedos sem fim. Não se trata disso - nem essa criança existe. Essa é uma visão simplista e falsa, nostálgica de uma pretensa idade de ouro infantil, um mundo irresponsável e despreocupado, que nunca existiu. Toda criança quer crescer. A tragédia de Peter Pan é que ele não consegue crescer, porque ele não tem memória. Esquece de tudo, vive num eterno presente. Por isso precisa vir buscar reforço e salvação na memória alheia, ouvindo toda noite as historias que a sra Darling conta aos filhos, e, em seguida, levando-as para os Meninos Perdidos na Terra do Nunca – um lugar sem tempo, como o próprio nome nos recorda. Até que convence Wendy a ir para lá com ele, a fim de desempenhar esse papel de contadeira de histórias e guardiã da memória.

“Lá, em meio a várias aventuras, vai ficando evidente que ele não consegue lembrar nem mesmo de coisas recentes, forçado a viver no suplício inconsciente da eterna repetição. Quando a perda da memória começa a ameaçar seus irmãos, Wendy percebe que tem de lhes contar a história deles mesmos e de seu passado, fazê-los recordar (re-cordar, trazer de novo ao coração), para que possam sobreviver e não sejam condenados a viver apenas na eterna novidade, uma atrás da outra, num interminável presente.

Essa é a questão fundamental que Peter Pan coloca em discussão. É isso que faz com que seja um dos livros mais atuais que as crianças podem ter à sua disposição hoje, neste tempo de modismos sucessivos, celebridades instantâneas e esquecimentos profundos.”

(Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, Ed. Objetiva, 2002)

Poucas histórias nos falam de modo tão radical sobre o papel fundamental desempenhado pela narrativa, pela literatura e pela história no crescimento. Poucas vezes se mostrou com tanta clareza como é profundo o esforço cognitivo da criança, sua busca de saber quem é e quem pode vir a ser, por meio da palavra transmitida. É um livro que nos deixa essa herança contundente: estar alijado da memória e da narrativa é um fardo pesado, um motivo de sofrimento e angústia para a criança, algo que ela não é capaz de formular com clareza e consciência, mas a deixa perdida e sem referências. Traz um universo aflitivo, carregado de infelicidade. Faz com que alguém como Peter Pan, em estado de confusão mental, chegue ao ponto de às vezes achar que não cresce porque não quer, apresentando repetição como se fosse novidade e confundindo liberdade com atoleiro e paralisia. A clareza de Wendy é fundamental para que as crianças se salvem e possam crescer, na vida real, esta nossa, histórica, na Terra do Sempre, onde a palavra conta histórias, preserva a memória e combate o esquecimento, onde a narrativa compartida é capaz de diminuir sofrimentos (como a psicanálise conhece tão bem), onde todas as possibilidades de crescimento existem. Até mesmo a possibilidade de sonhar com a Terra do Nunca como um lugar maravilhoso -- e inesquecível.

Peter Pan intui tudo isso quando parte à procura de histórias, quando parte voando toda noite de sua ilha, em busca da história que ouvirá do lado de fora da janela da família Darling e trará rapidamente para os Meninos Perdidos, antes que a esqueça. Toda criança tem esse impulso e costuma pedir histórias, quer que os adultos as repitam, de novo e de novo. Como se cada um soubesse que depende dessas narrativas para poder crescer e poder ir construindo sua própria história, sabendo de onde veio, quem é, para onde pode querer ir. Não fechemos portas e janelas para esses pequenos, de espíritos ávidos pela palavra. Oferecer às criancas narrativas de qualidade, dar-lhes a oportunidade de ter contato com textos literários dos quais elas possam se apropriar e passem a ter como seus, propiciar-lhes boas leituras, enfim, tudo isso constitui um ato de amor e uma responsabilidade social dos adultos.

Cada um de nós pode encontrar outros exemplos de personagens amados que, ao longo da literatura infantil, nos tem mostrado que é possível e necessário confiar na inteligência infantil para que ela alavanque o crescimento. Essa é a leitura que importa estimular e fomentar -- a que é capaz de apostar na capacidade do leitor de crescer e se superar. A que não se limita a lhe oferecer na bandeja uma papinha mastigada, fácil de engolir. A leitura que celebra a perspectiva de uma tomada de consciência, e que substitui o autoritarismo das palavras que dão ordens e exigem ser obedecidas, pela autoria compartilhada entre o momento da escrita e o da leitura, entendida como uma decifração inteligente e uma recriação ativa, capaz de afirmar a autonomia de cada um no ato mágico de ler.

Ou, nas belas palavras de Emilia Ferreiro:

“Había una vez un niño...que estaba con un adulto... y el adulto tenía un libro... y el adulto leía. Y el niño, fascinado, escuchaba como la lengua oral se hace lengua escrita. La fascinacion del lugar preciso donde lo conocido se hace desconocido. El punto exacto para asumir el desafío de conocer y crecer.”

(Emilia Ferreiro, Pasado y presente de los verbos leer y escribir, Fondo de Cultura, Mexico 2001)



* Palestra proferida pela autora na XIII Feira Internacional do Livro em Havana, Cuba, em fevereiro de 2004.

Este texto eu encontrei aqui:
http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/

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